terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Opinião: Pangas e mangas


Abaixo posto a íntegra da Coluna de Cora Ronai no jornal O Globo do dia 29/11/12, abrs MD.

E não é que o panga deu panos para as mangas? O peixe vietnamita tem admiradores e detratores em quase igual número. Os admiradores apreciam o gosto e o preço; já a principal bronca dos detratores é a distância que o panga, criado e processado no Vietnã, viaja até vir parar nas nossas mesas. Recebi emails de donos de restaurante que o servem com grande sucesso, de leitoras que me deram ótimas receitas (pelo visto, ele funciona muito bem assado) e de ecologistas preocupados com o custo ambiental da longa viagem do peixe; recebi também um email de Thiago De Luca, diretor comercial de uma empresa chamada Frescatto:

“Como você mesma disse, o boato alarmista que se espalhou na internet foi enorme”, escreveu o Thiago. “Mesmo com uma forte campanha da nossa equipe em pontos de vendas, site e SAC, ir contra um hoax não é tarefa fácil. Mesmo informando a real situação do pescado, mesmo mostrando que temos todos os documentos da Anvisa, de controle de qualidade e informações técnicas sobre o panga, não é fácil ir contra a onda dos boatos da internet. Eu mesmo já fui ao Vietnã quatro vezes para conhecer a produção, atestar a qualidade e procedência e fechar contratos com fornecedores. Para você ter uma idéia, na época em que o boato surgiu as vendas caíram mais de 50 %, e estamos falando de mais ou menos 50 toneladas mensais de filé. Hoje, as vendas já estão em recuperação, mas ainda não chegaram ao patamar anterior.”

O email do Thiago me lembrou o email do Guilherme Giorgi, diretor do Sal Cisne, que teve tanta repercussão aqui e no blog no ano passado. Gosto quando representantes da indústria mostram que estão atentos aos consumidores. E gosto, sobretudo, quando essa atenção vem da indústria de alimentos. Comida é coisa séria, que tem que ser tratada com o máximo respeito.

O engenheiro de pesca Maurício Duppré, que mantém o blog Cardume também escreveu.

“Por trabalhar no setor, vez por outra me perguntam se este email bomba procede. Ano passado recebi tanto esta pergunta que postei em meu blog duas matérias sobre o panga, uma esclarecendo esta inverdade com um documento do governo brasileiro atestando a sua boa procedência, e outra apresentando seu processo produtivo lá no Vietnã, com um vídeo de uma empresa local mostrando do cultivo ao filé. Elas estão em bit.ly/V17Hjy e bit.ly/QoXf8N.”

Assisti ao video indicado pelo Maurício, que é um produto estranho na categoria cinema. Ele não tem narração nem legendas. Apenas acompanha a “fabricação” dos peixes, da alimentação dos bichinhos à lavagem das roupas dos funcionários ao final de um dia de trabalho. A trilha sonora é esquisitíssima para o tema: canções pop ocidentais, como ”The rhythm of the rain” e “El condor pasa”, tocadas numa porrinhola eletrônica. Depois de três minutos insuportáveis, cliquei no mute e assisti ao resto dos nove minutos em silêncio.

Ao contrário do que afirma o hoax, os pangas não são criados debaixo de palafitas. Ou, por outra: nem todos os pangas. Os do vídeo — que, imagino, sejam parentes dos que chegam ao Brasil — vêm de fazendas gigantescas. Logo depois de uma externa da fábrica, a camera mostra alguns trabalhadores percorrendo um trecho de rio numa balsa e distribuindo pás de ração pela água. Na próxima cena, os pangas capturados por uma rede são transportados em tonéis para um barco que os leva, vivos, até a fábrica; lá são recolhidos mais uma vez, agora em baldes, e despejados na esteira que os leva até uma linha de processamento, onde são decapitados, limpos e transformados em filés.

Tudo é muito limpo e eficiente. O vídeo mostra os operários que estão pegando no serviço lavando e desinfetando as mãos. A limpeza das esteiras e das bancadas, por sinal, é constantemente enfatizada. Nas últimas cenas, os filés são congelados, empacotados e embarcados em caminhões frigoríficos.

o O o

O mundo é um lugar esquisito e me incomoda muito saber que seres humanos como eu passam a vida tirando a vida de outros seres vivos só para que eu possa me alimentar sem ter que matar a minha própria comida. Não consigo fazer ideia do que vai pela cabeça de alguém que leva oito horas por dia degolando peixes, seja aqui ou no Vietnã, e tenho pena dos meus semelhantes que dependem de empregos tão cruéis para sobreviver; para não falar nos bichos, é claro, que num universo ideal morreriam todos de velhice. Apesar disso, adoro peixe e não dispenso um filézinho bem preparado.

Para mim, aliás, um dos grandes erros do nosso projeto básico é sermos ao mesmo tempo onívoros e capazes de empatia. Leões não parecem se preocupar muito com os sentimentos das zebras que abatem, assim como os meus gatos, sempre tão carinhosos e gentis, pouco se importam com o sofrimento dos insetos que eventualmente capturam. Mas isso já é outra história… e mais pano ainda para as mangas.

Fonte: (O Globo, Segundo Caderno, 29.11.2012)

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