sábado, 4 de setembro de 2010

Recife Artificial: A experiência portuguesa

Muito se fala dos recifes artificiais como solução pra coibir a pesca de grande escala, e a utilização de apetrechos mais predatórios em benefício da pesca artesanal de pequena escala e mais seletiva (linha de mão), de áreas para  turismo de mergulho, para agregar cardumes, ou até aumento de produtividade, etc.

Abaixo, disponibilizamos, para reflexão, artigo de um pesquisador contando sobre a experiência da implantação de Recifes Artificiais na região de Algarves em Portugal, trabalho que foi sendo desenvolvido desde 1990.

No início ele conta também um pouco da história desta instrumento que vem a contribuir em muitos casos com a gestão ambiental, o ordenamento do espaço marítimo e a sustentabilidade, principalmente da pesca artesanal.



RECIFES ARTIFICIAIS: ASPECTOS GERAIS E A EXPERIÊNCIA PORTUGUESA
por Miguel Neves dos Santos 
(Pesquisador IPIMAR - Coordenador Científico do Projeto de Implantação de Recifes Artificiais na Costa Algarvia).

A grande disponibilidade e acessibilidade de recursos pesqueiros na faixa costeira, faz com que estas tenham sido, desde sempre, alvo de uma forte atividade pesqueira, que está na origem de desequilíbrios mais ou menos significativos nestes ecossistemas, com consequências que se estendem para além das espécies exploradas. Verifica-se, também, que os instrumentos tradicionais de regulação pesqueira (ex. tamanhos mínimos, restrições de esforço de pesca, dimensão mínima da malhagem das redes, etc) se mostram muitas vezes insuficientes ou mesmo ineficazes para garantirem a sustentabilidade da pesca e do ambiente. Por outro lado, vimos assistindo a uma crescente diversificação dos usos da faixa costeira, com a expansão do eco-turismo (ex. mergulho e pesca desportiva), extração de petróleo e gás natural, bem como das novas atividades em mar-aberto (off-shore) - aquicultura e produção de energia a partir do vento e das ondas. É neste quadro de referência que se considera imperativo encontrar instrumentos alternativos que ajudem a inverter (ou pelo menos a estabilizar) a tendência atual de degradação ambiental desta faixa (ex. decréscimo da biodiversidade marinha e dos recursos pesqueiros), bem como a promover o ordenamento das atividades que ali se exercem, por forma a garantir a exploração sustentada dos recursos e o equilíbrio ambiental.

Os Recifes Artificiais (RAs) tal como vêm sendo desenvolvidos nas décadas recentes, contribuem para a resolução destes problemas, apresentando-se como um instrumento de gestão integrada dos ecossistemas marinhos e das atividades relacionadas com a exploração dos recursos pesqueiros e energéticos. Mas afinal o que é um recife artificial? Embora não existe uma definição universalmente aceite acerca do que é um recife artificial, na Europa foi possível encontrar um consenso entre aqueles que se dedicam ao estudo destes habitats artificiais (European Artificial Reef Research Network,1998), que define um recife artificial como "uma estrutura deliberadamente colocada no fundo do mar, totalmente submersa, que procura imitar algumas das características dos recifes naturais". Podem, pois, considerar-se recife artificiais, estruturas tão diversas como: módulos de concreto ou aço; desperdícios industriais (ex. antigos navios, plataformas de extração de petróleo e carcaças de automóveis, aviões e outros meios de transporte; e materiais de oportunidade de baixo custo, como ramos de árvore, bambu, pedra, etc).

Aspectos históricos e princípios de funcionamento

Mas como surgiram e como funcionam os recifes artificiais? O primeiro recife artificial pode ter surgido em qualquer local com tradição pesqueira, pois a capacidade de uma estrutura submersa atrair diferentes formas de vida é bem conhecida de qualquer pescador. Porém, o primeiro registo provem do Japão, onde segundo Ino (1974), no sexto ano da Era Kansei (1789-1801) um pescador da aldeia de Manzai (Província de Awaji, Ilha de Awaji, Sul de Kobe), quando pescava com um gochi-ami (pequena rede de cerco) capturou por acaso milhares de pargos junto aos destroços de um navio afundado. Alguns anos mais tarde, quando os destroços desapareceram, os peixes deixaram de formar cardumes nesse local. Foi então que as comunidades pesqueiras decidiram afundar grandes estruturas de madeira e bambu amarradas a sacos de areia. Poucos meses mais tarde voltaram os cardumes e as capturas passaram a ser superiores aquelas que antes ocorriam junto do navio afundado.

A popularidade dos recifes artificiais resulta em grande medida dos princípios básicos do seu funcionamento, pois quaisquer estruturas colocadas no fundo do mar provocam ligeiras alterações nas correntes que estão na origem de ruídos. Estes sons são detectados pelos peixes, que por simples curiosidade são atraídos até aos recifes. Por outro lado, a maioria dos materiais utilizados na construção dos RAs constitui um substrato de fixação para uma grande diversidade de invertebrados marinhos. Estão assim reunidas as condições básicas para criação de cadeias alimentares, que serão tanto mais complexas quanto mais heterogénea for a estrutura do recife.

Aplicações dos recifes artificiais

Ultrapassada, em grande medida, a sua inicial e exclusiva utilização como estruturas de agregação de peixes - com o único objetivo de aumentar o rendimento da pesca - os RAs, têm vindo a alargar o seu leque de aplicações, nomeadamente no plano ecológico, contribuindo para o incremento da produção biológica, promoção da biodiversidade marinha, protecção de juvenis e de revitalização dos ecossistemas, etc. Outra área de utilização dos RAs em grande expansão, está relacionada com as atividades de lazer, como o mergulho, a pesca desportiva e mesmo o surf. Contudo, qualquer recife artificial, independentemente do propósito subjacente à sua criação, deve reunir um conjunto de características que garantam ser: "amigo" do ambiente, isto é, não causar impactos negativos do ponto de vista ambiental (ex. poluição causada por libertação de materiais tóxicos); estruturalmente estável, por forma a evitar a sua deslocação ou desmembramento sobre condições adversas; local de fixação e agregação da vida marinha, sem alterar os equilíbrios naturais da zona onde for implantado; e, por fim, ter dimensão suficiente para atingir os objectivos a que se destina.

O Japão foi o país pioneiro e é líder mundial na utilização deste tipo de estruturas. É, pois, natural que seja na Ásia que se vêm desenvolvendo os grandes projectos de RAs. Na Europa, para além de Portugal, Itália e Espanha são os países que mais têm investido nesta tecnologia, embora outros como a Reino Unido, França, Grécia, Turquia, Noruega, Suécia e Polónia comecem a dar passos importantes nesse sentido. Porém, nem só de grandes projetos é feita a história dos recifes artificiais, já que um pouco por todo o Mundo eles vêm sendo utilizados, sobretudo visando o incremento dos rendimentos da pesca. Baseados em iniciativas de pequenos grupos de pescadores, que fazem maioritariamente uso de materiais de oportunidade de baixo custo na sua construção, são bastante populares em muitos países dos Oceanos Índico e Pacífico (ex. Filipinas, Tailândia, Índia, Malásia e algumas ilhas da Polinésia) e nas zonas inter-tropicais do Atlântico, quer na costa de África (ex. Senegal e Costa do Marfim), quer da América (ex. México e Caribe). O sucesso deste tipo de projectos é muitas vezes posto em causa, pois contrariamente aos grandes projectos, não são objeto de planeamento nem de estudos prévios, tendo por isso uma longevidade relativamente curta e uma fraca estabilidade estrutural, por vezes causadora de efeitos indesejáveis.

Um dos usos mais recentes dos RAs decorre do seu aproveitamento com fins de recuperação ambiental, quer como dispositivos dissuasores de modalidades de pesca causadoras de grande impacto (ex. arrasto em zonas costeiras), quer recuperando fundos marinhos destruídos por diversos tipos de actividades humanas. Porém, um dos usos mais comuns dos RAs está relacionado com as actividades lúdicas, como a pesca e o mergulho. Estas iniciativas são particularmente populares nos Estados Unidos e Austrália, onde algumas delas alcançaram grande sucesso, gerando milhões de dólares num curto espaço de tempo.

Os recifes artificiais da costa algarvia
mapa_fases_portugues










A implantação de Recifes Artificiais nas águas costeiras portuguesas é relativamente recente. Apenas em 1990 e beneficiando de apoio financeiro do Plano Integrado de Desenvolvimento Regional se inicia no litoral algarvio, um projecto-piloto seguindo a filosofia japonesa, com o objectivo de avaliar no contexto local, os efeitos destas estruturas ao nível ecológico e pesqueiro.

A escolha da costa algarvia deveu-se sobretudo ao facto de ali estar reunido um conjunto de condições que a experiência internacional reconhece como essenciais para a desenvolvimento e sucesso de projectos deste tipo, designadamente:
  • existência de acidentes naturais costeiros que proporcionam uma grande disponibilidade de juvenis de populações de peixe de grande interesse comercial;
  • condições de mar (ondulação e correntes) moderadas, quando comparadas com a costa ocidental, fundamentais à estabilidade e funcionamento dos recifes;
  • escassez de formações rochosas submarinas, particularmente no sotavento algarvio;
  • intensa exploração dos recursos pesqueiros litorais, incidindo com alguma frequência sobre populações juvenis;
  • grande número de embarcações e de pescadores operando na faixa costeira cuja atividade é altamente dependente dos recursos locais.
Os resultados do estudo que se prolongou por 6 anos, vieram por em evidência o bom funcionamento destes RAs, traduzido, entre outros aspectos, num aumento da produção biológica na sua zona de influência, em boas taxas de colonização, numa elevada capacidade de acolhimento de populações juvenis e no substancial aumento dos rendimentos da pesca.

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Na sequência deste projecto-piloto, o IPIMAR desenvolveu entre 1998 e 2008, no âmbito do IFOP, um programa que teve como primeiro objectivo a criação de um complexo recifal na costa algarvia constituído por sete sistemas recifais (vidémapa anexo), cuja instalação foi concluída em Junho 2003. Este complexo recifal, cujo custo ascendeu a 7,5 milhões de euros (co-financiados em 75% por fundos europeus), é hoje o maior deste tipo na Europa e um dos maiores em todo o Mundo. Estendendo-se por mais de 43km2 (área equivalente a 4.300 campos de futebol), estima-se que a sua área de influência seja de cerca de 67km2. Para tal, faz uso de dois tipos de módulos de concreto (vide figura), com um volume de 2,7 e 174m3e peso unitário de 3 e 40 toneladas, respectivamente. Constituído por cerca de 20.000 módulos (com um volume superior a 100.000m3), está organizado em conjuntos e grupos recifais (vide infografia), de forma a maximizar a sua área de influência e permitir o exercício da pesca.

Tendo como principal efeito esperado a sustentabilidade da pesca artesanal na região, este programa demonstrou já os seus impactos a diferentes níveis:
  • Bio-ecológico - através do (i) desenvolvimento de novos "habitats", valorizando a zona costeira numa extensão relativamente alargada, do (ii) aumento significativo da capacidade de acolhimento e proteção de juvenis do litoral algarvio, (iii) e da contribuição para a recuperação dos recursos pesqueiros litorais, sobretudo aqueles que se encontram submetidos a uma mais intensa exploração.
  • Gestão dos recursos pesqueiros - através do (i) aumento da disponibilidade e diversidade dos recursos para a atividade da pesca, da (ii) criação de novas zonas de pesca condicionada, (utilizando artes mais selectivas e/ou menos lesivas para o ambiente), e do (iii) aumento da rentabilidade da pesca.
  • Ordenamento das pescarias e das atividades aquícolas litorais - pondo em prática formas alternativas de gestão de recursos pesqueiros, com carácter inovador e integrado, combinadas com outras atividades, designadamente a aquicultura "off-shore" e o eco-turismo.
  • Socioeconômico - como consequência dos efeitos supra mencionados.
Como nota final não podemos deixar de sublinhar que qualquer estratégia de ordenamento e de gestão integrada de recursos pesqueiros só será viável se contar com o empenho e o estreito envolvimento das comunidades pesqueiras e outros agentes que, repetidamente, nos têm feito sentir o seu apoio a esta iniciativa. Acreditamos, pois, que os recifes artificiais funcionarão como catalisadores do interesse de diferentes setores econômicos, tendo em vista a gestão participada destas zonas, potenciando deste modo o papel das estruturas artificiais como instrumentos de revitalização de ecossistemas costeiros, assim como de ordenamento e de gestão integrada de atividades na faixa marinha litoral.

Quase 20 anos após os primeiros trabalhos, este Programa do IPIMAR é considerado pela comunidade científica internacional um caso exemplar no domínio da utilização dos recifes artificiais. Por este motivo, tornou-se sobretudo conhecido a nível internacional, sendo os seus responsáveis convidados regularmente a apresentarem os resultados alcançados a profissionais e gestores do sector pesqueiro, mas também a responsáveis por políticas de gestão integrada do litoral um pouco por todo o mundo. Contudo, esta iniciativa também não passou despercebida no nosso país, tendo o IPIMAR recebido recentemente diversos pedidos de apoio técnico, designadamente de autarquias interessadas em desenvolver projectos semelhantes nos seus Concelhos ao longo da costa ocidental de Portugal continental.

Fonte: Revista Marinha

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