segunda-feira, 18 de outubro de 2010

CE - Lagosta: A guerra continua





Pescadores brigam, em alto-mar, para combater a pesca predatória, enquanto aguardam por justiça

Icapuí. Uma guerra de grandes proporções cujos soldados são pequenos sobreviventes da própria luta para manter em pé, vivos. A fim de garantir que vão ter “o de comer”, pescadores empunham armas, vestem capuzes e travam combates em alto-mar contra outros grupos de pescadores que, por sua vez, capturam seu alimento e a fonte de renda de forma tão irregular que o objeto de disputa está acabando com o mar cearense. A Guerra da Lagosta é a única coisa que tem se mantido regular nas últimas décadas no litoral de Icapuí, costa leste do Estado do Ceará.



Clique para Ampliar
Pesca artesanal da lagosta é realizada com manzuás, único instrumento permitido por Lei 

Os combates já tiveram baixas de pescadores, entre mortos e feridos. O problema, acompanhado de perto pelo Diário do Nordeste, que popularizou o termo “Guerra da Lagosta”, é narrado em capítulos que se seguem a cada novo conflito.

Clique para Ampliar
Captura de barco que fazia a pesca predatória no mar do Litoral Leste, “justiceiros” da pesca artesanal de Redonda arrastam embarcação como prêmio

No episódio anterior, foi contada a revanche dos predadores. Depois que uma operação com Polícia Federal, Marinha, Exército e Polícia Militar apreendeu os dois barcos que os pescadores artesanais da Praia da Redonda usavam para fiscalizar por conta própria a pesca ilegal predatória, os “redondeiros” lamentam cada dia que retornam do mar de manzuás vazios, quando não são destruídos pelos “alternativos”, como se definem os que realizam a pesca com equipamentos proibidos pela legislação.

A Guerra da Lagosta ganhou repercussão nacional. Houve promessa de uma solução pelo ministro da Pesca, Altermir Gregolin, em visita ao Ceará. A pesca é fiscalizada pelo Ibama, e a superintendência do órgão no Estado já fez várias solicitações de equipamentos e pessoal para intensificar a pesca predatória no Estado. Nem com mais barcos e mais alguns homens para fazer a vigília em alto-mar a guerra teve fim. “É só o barco do Ibama se afastar que os ‘cafanguistas’ aparecem”, conta Edivaldo Soares da Silva, pescador da Praia da Redonda.

“Cafanguista” é o nome dado aos pescadores que utilizam marambaias e compressores de ar para pesca de mergulho, atividades proibidas pela legislação por reconhecidos danos ao meio ambiente. E se “cafanguista” aparece, lá está o “redondeiro” para fazer “justiça”, e tem início mais uma troca de tiros.

Clique para Ampliar
Policiamento ambiental tenta conter as ações dos pescadores ilegais

O que separa o artesanal legal do alternativo predador é o nível de consciência de que é a pesca predatória que está tornando a lagosta escassa e cara. Nos bastidores do conflito, grupos econômicos se beneficiam da pesca indiscriminada. Em Icapuí, Prefeitura e Câmara não se pronunciam com medidas concretas, nem mesmo quando um carro da Prefeitura foi incendiado e a sede do legislativo foi apedrejada e atingida por uma bomba caseira. Lagosta é fonte de renda e assunto mais delicado a se falar no Município, em meio a comunidade dividida.

Um técnico, que preferiu não se identificar, da Secretaria Estadual da Pesca estima que 50% da lagosta exportada pelo Ceará foi obtida de forma ilegal. O chefe de fiscalização do Ibama no Ceará, Rolfran Ribeiro, é de acordo que o problema da lagosta “só se combaterá de forma mais firme com uma ação de vários órgãos, e passa pela própria conscientização das comunidades do mar”.

Fiscalização

As equipes de fiscalização têm uma árdua rotina, já acompanhada pela reportagem. Começa de madrugada, com a definição da rota de fiscalização, com base em imagens de satélite. Quando a viagem é pelo Litoral Leste, o ponto de partida é Fortim, em barco inflável motorizado. Da operação participam em média dois tripulantes, três fiscais do Ibama, dois mergulhadores do Corpo de Bombeiros e dois policiais militares. A blitz em alto-mar averigua dos pescadores documentos da embarcação, que deve estar registrada na Secretaria Especial da Aquicultura e Pesca (Seap), e o tipo de pesca. Comprovações de ilegalidade levam à aplicação de multa ou mesmo a apreensão do barco, que é rebocado até o porto de Fortaleza.

Contra os piratas

Mas a blitz dos pescadores contra os “piratas” do mar chama mais a atenção: ao alcançarem um barco com equipamentos ilegais, pescadores justiceiros, com capuzes feitos das camisas, tendo vencido a troca de tiros, rendem quem está na embarcação, que é rebocada para a Praia da Redonda. Lá, mais de mil pessoas das famílias de pescadores aguardam o “prêmio”, forçadamente puxado para terra e aposentado na areia, como prova de “luta contra a pesca ilegal”, em faixa escrita próximo ao “boca do povo”, ponto de encontro de pescadores. Já foram puxados 14 barcos, alguns deles incendiados, mas esse tipo de captura está suspenso, com a apreensão pela Polícia Federal dos barcos usados na fiscalização. “É só o tempo de a gente se equipar de novo, pois depender só do Ibama não dá”, garante um redondeiro, que não quis se identificar.

Fique por Dentro

Ouro do mar

A produção de lagosta passou de 2.186 toneladas, em 2007, para 4 mil toneladas, em 2009, um crescimento de 45,3%. Esta produção, contudo, já chegou à marca de 7.863,4 toneladas, em 1991. O Ceará ainda é o maior produtor e exportador de lagosta do Brasil. Em 2007, foram exportadas 759 toneladas de lagosta. Em 2009, o número subiu e alcançou a marca de 1.504,5 toneladas, representando 71,8% do total exportado pelo Brasil. No mesmo ano, as exportações de lagosta do Ceará injetaram US$ 36,6 milhões no Estado e foram responsáveis por 70,6% do valor arrecadado pelo País com a exportação do produto. Até setembro de 2010, a produção do crustáceo no Estado já soma, até setembro, 1.578 toneladas. O período do defeso este ano foi maior que em 2009.

O litoral brasileiro possui pouco mais de três mil barcos permissionados para a pesca da lagosta. Destes, cerca de 1.900 pescam no Ceará, representando 62% da frota pesqueira.

Insustentável

Lucro fácil é um dos atrativos da pesca ilegal

Icapuí. É mais comum a pesca ilegal da lagosta em Icapuí e outros municípios do litoral do que a captura artesanal, exclusivamente com manzuás. Dois importantes motivos ajudam a explicar: a rentabilidade econômica (40 vezes maior que da forma artesanal) e a precária fiscalização. Não somente a fiscalização no mar, em que o Ibama conta com menos de 20 homens para monitorar os mais de 500 km de costa, mas a vigilância em terra, visto que centenas de barcos estão aportados com marambaias e botijões de gás de cozinha vazios, adaptados para reservar ar transmitido ao mergulhador por um compressor de encher pneu de carro.

A pesca ilegal acaba com a lagosta e com a própria saúde do pescador – há registros de embolia pulmonar causada pela pesca com mergulho. Para aguentar várias horas embaixo d’água, os pescadores consomem crack, e essa prática aumentou o número de viciados em drogas nos povos do mar.

Voltar do mar com 400kg de lagosta do que 15kg para um mesmo tempo de pesca artesanal é o que mais motiva a pesca predatória. Em comunidades como Barrinha e Tremembé, esse tipo de captura é considerada normal, “porque é nosso meio de sobrevivência. A gente tem ódio dos redondeiros, porque querem fiscalizar se eles não têm poder pra isso? Meu marido sai de casa e eu tenho medo de ele não voltar, e ele não é bandido, ‘tá’ só trabalhando pra trazer comer pra dentro de casa”, afirma a dona-de-casa Germana Maria, mulher de quem pratica a pesca ilegal da lagosta. Seu relato expõe a natureza das duas frentes de batalha: pais de famílias pobres que desde que nasceram pescam a lagosta para sobreviver.

A pesca ilegal também está reduzindo a população de tartarugas marinhas. A rede caçoeira é uma das maiores causas da diminuição de tartarugas, que podem desaparecer nos próximos 50 anos, de acordo com o Projeto Tamar. O Comitê Científico da Lagosta recomendou e a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap) e o Ministério do Meio Ambiente implementaram um programa de regularização das embarcações, como forma de combater a pesca de mergulho com compressor e redes caçoeiras. “Este é um pensamento estacionado no século XIX, quando se acreditava que os recursos pesqueiros marinhos eram inesgotáveis”, comenta o analista ambiental do Ibama, José Augusto Aragão.

Fotos e reportagem: Melquíades Júnior

Fonte: Diário do Nordeste

Um comentário:

  1. Nossa! Interessante e triste a matéria! A gente nem imagina o que se passa nessa terra gigante... mas legal ver que aos pouquinhos a população vai se conscientizando que o estrago é a longo prazo! Às vezes, a curtíssimo prazo! Bela matéria!

    ResponderExcluir

As postagens mais populares da última semana: