segunda-feira, 19 de abril de 2010

LIVRO: MAR MORTO (1936) - Jorge Amado



A MANHÃ DOS MARÍTIMOS

Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros (Mar morto, 1936).

Instável como a vida de todos nós, sempre a surpreender com o inesperado, lugar mítico, tema poético de dimensões oceânicas, “mistério que nem os velhos marinheiros entendem”. “Doce amigo”, mas também dono das que oculta o corpo do amado, docemente levado pelas ondas até a Terra de Aiocá: o mar de Jorge Amado é signo da vida e do amor.

Os velhos marinheiros, donos de saveiros e malandros que povoam os portos do Recôncavo Baiano, onde se passa a história de Guma e Lívia, é o “povo de Iemanjá que tem muito o que contar”. Tendo a morte sempre por perto, eles se entregam de corpo e alma às belas noites de Lua cheia e enfrentam a angústia das tempestades. Mas os homens do mar têm sonhos de vida: viajar sobre as ondas, ter um saveiro seu, beber no Farol das Estrelas, fazer um filho que seguisse seu destino e ir um dia com Iemanjá. Bem que canta uma voz no cais nas noites mais belas:

É doce morrer no mar…


Canção do mar

O conhecido verso da música É doce morrer no mar (1941), dos amigos Jorge Amado e Dorival Caymmi, homens da terra que se dedicaram a entender o coração dos marítimos, surge por várias vezes na história do Mar morto, na voz do negro que atravessa a noite.

Numa dessas noites de tempestade, quando nenhum pescador se aventurara a sair com seu barco, o apelo de seu Godofredo por socorro aos filhos que estavam num navio perdido faz Guma lançar-se ao mar bravio e realizar seu primeiro ato heroico. Célebre nos portos da Bahia, seu desejo não é diferente do dos marinheiros que povoam o cais: quer amar perdidamente uma bela mulher, mesmo sabendo que o destino dela será triste.

Há uma canção do cais que diz que desgraçado é o destino das mulheres dos marítimos. Dizem também que o coração dos marítimos é volúvel como o vento, como os barcos que não se fixam em nenhum porto. Mas todo barco tem o nome do seu porto na proa. Pode andar por outros portos, pode viajar por muitos anos, mas não esquece o seu lugar, voltará a ele um dia. Assim o coração dos marinheiros. Nunca eles esquecem aquela mulher que é a deles só.

A dona do mar: Iemanjá, dona Janaína, dona Maria, Inaê, princesa de Aiocá

Durante a festa de Iemanjá, “mais bonita que todas as procissões da Bahia”, no terreiro de Candomblé de pai Anselmo, onde era iniciado, Guma pede à Iemanjá, a rainha dos cinco nomes, uma mulher tão bonita quanto ela, com seus cabelos que colorem as águas salgadas. Nessa mesma ocasião, ele vê Lívia e se apaixona perdidamente.

Neste romance, que Jorge Amado considerou seu melhor livro, escrito em 1936, aos 24 anos, quando acabara de concluir a faculdade de Direito no Rio de Janeiro, estão presentes temas poéticos por excelência: amor, morte e música.

Pelo título somos levados a pensar no mar Oriental de mesmo nome, o Mar Morto, que banha o interior da Palestina (Jordânia, Cisjordânia e Israel), elo entre povos que vivem uma guerra de tão difícil compreensão para nós, ocidentais neste século XXI. A água cinzenta, pesada e escura do Mar Morto descrito por Jorge Amado se assemelha à espessura desse mar do Oriente. Por sua grande salinidade e seus minerais, no Mar Morto é possível ao banhista flutuar, perder o chão sob os pés na água que lembra calda de açúcar queimado. Um pouco como ficamos após a leitura de Mar morto, que apresenta o amor como bálsamo para a dor humana diante da possibilidade da morte e do que pode nos acontecer de imprevisível.

O romance proporciona valiosas reflexões: mostra a dificuldade que os pescadores e suas famílias enfrentam no dia a dia, os barcos que se perdem no mar, as mulheres a chorarem a morte de seus homens e a esperteza dos homens que se aproveitam da necessidade dos pescadores. Como quando Guma é contratado para fazer viagens perigosas e ilegais, que ele acaba aceitando por não ver outra alternativa para conseguir o dinheiro que precisa para comprar seu saveiro e finalmente ter a independência que deseja.

O mar é o lugar do encontro, nele se movimenta não só o amor de Guma e Lívia, mas as canções do ABC de Rosa Palmeirão, o velho Francisco, o filho Frederico, Maria Clara, Rufino, Judith, Esmeralda, o árabe Toufick, Chico Tristeza, Jacques, Rodolfo, Vesgo, Maneca Mãozinha e todo o povo marítimo. E ainda doutor Rodrigo e dona Dulce, médico e professora que fizeram do mar sua moradia, na esperança de proporcionar alguma mudança na realidade daquele lugar. É no milagre esperado por dona Dulce que surge o diálogo com as ideias anarquistas e comunistas que moviam o escritor naquela época.

Há no livro de Jorge Amado a indicação de uma possibilidade de mudança social, que parte do povo, e ainda a ideia de um amor que ultrapassa o limite do individual.

No amor de Guma e Lívia, pulsante como o movimento das ondas do mar, estão presentes a não-aceitação inicial da família da moça, a sedução da vizinha Esmeralda, a vigília da morte e a tortura pela espera de seu homem. Saber-se mulher de Guma, ser seu “porto fixo”, é a serenidade de Lívia. Ciente de que seu laço estava firme como o nó dos marinheiros, poderia enfrentar tempestades e até a morte. O mar os unia, era doce amigo.

Lívia anunciava a chegada do milagre tão esperado por Dona Dulce, inventando um outro rumo para as mulheres dos marítimos, pois era ela também uma marítima.

Alguns poetas em língua portuguesa que tiveram o mar por inspiração:

Luís de Camões:

(última estrofe do canto primeiro de Os Lusíadas, 1572)
(...)
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Fernando Pessoa:

(“Mar português”. Mensagem, 1934)
(...)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Cecília Meireles:

(“Beira mar”. Mar absoluto, 1945)
(...)
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem e não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha...
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.

Carlos Drummond de Andrade:

(“Amar”. Claro enigma, 1951)
(...)
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

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