Golfinho preso numa rede de pesca do barco L'Arlequin II, no Golfo da Biscaia
Essas cenas se tornaram muito comuns: 1.200 golfinhos foram arrastados na costa atlântica da França desde janeiro, a maioria deles com ferimentos que sugeriam que os mamíferos morreram depois de ficarem presos em redes de pesca. Um recorde.
Para cada carcaça que acaba em uma praia, várias outras se deterioram no mar, dizem os biólogos, o que sugere que cerca de 6 mil dos 200 mil golfinhos comuns que vivem na baía podem ter morrido em menos de quatro meses por causa da pesca.
Assim, uma questão inquietante paira sobre as cidades portuárias que pontuam a costa que vai da Bretanha ao País Basco, e sobre suas centenas de navios de pesca, sem resposta clara. Por que tantos golfinhos estão morrendo agora?
A maioria das pessoas concorda que a pesca é responsável, mas o consenso para aí. Os pescadores afirmam que as capturas não intencionais, também conhecidas como capturas acidentais, permanecem incomuns, se não excepcionais, enquanto os cientistas alertam que os navios de pesca representam agora uma grande ameaça para os golfinhos.
Ativistas de um grupo ambientalista, a Sea Shepherd Conservation Society, acabaram de concluir um trabalho de dois meses para documentar as mortes e suas causas.
—É uma realidade não documentada que se desdobrou no mar e longe dos olhos do público — afirmou Justin Barbati, um voluntário de 27 anos, enquanto dirigia um barco inflável mais perto do L'Arlequin II, onde os pescadores arrastavam os corpos dos golfinhos a bordo.
Essa nova presença deixa os pescadores locais se sentindo injustamente alvos.
— Que a Sea Shepherd lute contra caçadores de baleias no Japão, tudo bem, mas nos seguirem enquanto estamos trabalhando e nos perseguirem, os pequenos e decentes pescadores, porque alguns de nós, às vezes, pegam golfinhos? É desproporcional — disse Jean Lagarde, 75 anos, conhecido como o pescador mais antigo de La Rochelle, enquanto limpava a tinta preta de sua embarcação em uma tarde recente.
O Golfo da Biscaia, um vasto golfo a oeste da França e ao norte da Espanha, há muito tempo é um paraíso para os golfinhos, por ser repleto de cardumes de sardinha, arenque e outros peixes que eles comem.
Os pescadores têm historicamente coabitado com golfinhos. Ultimamente, eles dizem ver muitos exemplares da espécie. A maioria dos pescadores não tem que procurar muito em seus smartphones para reproduzir vídeos de golfinhos girando em torno de suas embarcações.
Biólogos do Observatório Pelagis, fundado pelo governo, em La Rochelle, observaram pela primeira vez um pico de golfinhos nas praias em 2017, quando 1.200 deles foram encontrados mortos na costa francesa, seguidos por mais 900 em 2018.
Nos primeiros quatro meses deste ano, o número já supera os totais anuais que estavam entre os mais altos em 40 anos, disse Olivier Van Canneyt, que dirige o observatório.
— No dia em que nossos estudos mostrarem que a população de golfinhos diminuiu na baía, será tarde demais —disse Van Canneyt.
Autópsias atribuem 90% das mortes à pesca
As autópsias realizadas pela equipe de Van Canneyt atribuíram 90% das mortes de golfinhos a atividades de pesca. Eles descobriram que a maioria tinha morrido de asfixia, muitas vezes com o estômago cheio, indicando que eles estavam se alimentando quando ficaram presos debaixo d'água.
Muitos tiveram escoriações ou cortes causados por redes de pesca, disse Willy Dabin, que monitora os encalhes de golfinhos para o observatório.
— Alguns pescadores também danificam muito os corpos para não danificar suas redes — disse ele, na câmara frigorífica do instituto, mostrando um golfinho morto que havia sido cortado.
Como o golfinho comum é uma espécie protegida, os pescadores não podem trazer os corpos para terra, então jogam as carcaças no mar e a maioria das capturas acidentais permanece invisível, acrescentou Dabin.
Representantes de pescadores argumentam que o número de embarcações na baía, de até 600 no inverno e na primavera, não mudou nos últimos anos. As embarcações também são iguais, assim como a quantidade de peixes que pescam, segundo Julien Lamothe, chefe de uma organização de pescadores em La Rochelle.
— Todo pescador já teve que lidar com capturas acidentais, um dia ou outro. Esses são eventos chocantes que eles estão tentando evitar. Apanhar golfinhos não é o trabalho deles disse Lamothe.
Mas, como resultado das recentes restrições à captura de linguado, um peixe que vive no fundo, alguns barcos de pesca têm usado redes mais altas para capturar outras espécies, o que pode ter resultado em mais capturas acidentais de golfinhos, dizem os cientistas. Alguns têm redes de dezenas de quilômetros de comprimento.
Redes de pesca são ameaças em todo o mundo
De botos no México a golfinhos no rio Yangtze, na China, a captura acidental é “a maior ameaça aos mamíferos marinhos em todo o mundo”, de acordo com a Marine Mammal Commission, uma agência do governo americano. A maioria é de espécies longevas que se reproduzem lentamente: os golfinhos comuns do Golfo da Biscaia tornam-se sexualmente maduros aos 8 anos e podem viver até aos 25 anos, e as fêmeas dão à luz a cada três anos, em média.
Os ativistas da Sea Shepherd, a maioria deles voluntários, patrulham a baía a bordo do navio do grupo, o MV Sam Simon, procurando por traineiras de pesca e golfinhos mortos. Um repórter do New York Times e um fotógrafo juntaram-se a eles por um dia.
— Esta campanha é sobre observação a longo prazo; estamos fazendo o que o governo francês deveria fazer — disse Barbati, um biólogo que avalia os estoques de salmão para o governo canadense.
Lamya Essemlali, chefe da filial francesa da Sea Shepherd, tem defendido observadores e câmeras mais independentes a bordo de embarcações de pesca para evitar a captura acidental.
— As capturas acidentais são a primeira ameaça aos mamíferos marinhos, e os pescadores lançam suas redes bem no meio de seu habitat natural. Como podemos chamar essas capturas de acidentais? — disse Essemlali a bordo do MV Sam Simon .
A única solução a longo prazo, disse ela, seria a proibição na área de métodos de pesca que coletam indiscriminadamente quaisquer criaturas que estejam no mar. Mas isso ameaçaria a subsistência de centenas de pescadores e economias de suas cidades.
Dispositivos sonoros podem ser a solução para afastar os golfinhos das redes
O governo francês levantou um possível compromisso de curto prazo. O ministro da Ecologia, François de Rugy, disse que apoiaria a pesquisa em dispositivos acústicos que prendem às redes de pesca e fazem sons que afastam os golfinhos. Um estudo descobriu que, nos navios que usam os dispositivos, a pesca acidental diminuiu em 65%.
Mas os cientistas e Essemlali argumentam que os repelentes acústicos, conhecidos como “pingers”, excluiriam os golfinhos de um habitat importante e geralmente seguro.
E eles nem sempre funcionam; a traineira L'Arlequin II usa “pingers”. Dois dias antes de o navio prender os golfinhos em sua rede, seu capitão, Charles Le Moyec, disse que desde que ele começou a usar os aparelhos, ele não pegou mais golfinhos.
—Também não gostamos quando matamos golfinhos, mas até agora os “pingers” funcionaram bem — disse Le Moyec em sua cabana, enquanto sua tripulação descarregava dezenas de caixas de pescada congelada no cais de La Rochelle.
Dois dias depois, dois golfinhos mortos estavam em sua rede, perto dos repelentes acústicos. Depois disso, Le Moyec insistiu que era a primeira vez que pegava um golfinho este ano, acrescentando que se sentia atormentado pela Sea Shepherd, cujos voluntários o seguiram pela baía durante horas a fio.
Ao longo das dezenas de cabanas de pesca e garagens azuis, amarelas e vermelhas no porto de La Rochelle, muitos pescadores ecoaram a frustração de Le Moyec, dizendo que a Sea Shepherd queria tratar a pesca como um crime.
— Nunca vimos tantos golfinhos nas águas e a Sea Shepherd acusa-nos de ser assassinos. E quanto aos enormes navios da Holanda ou da Espanha — disse Lagarde.
Esses também estão no radar da Sea Shepherd. Quando o grupo encerrou sua campanha no mês passado, Essemlali disse que voltaria à baía no próximo inverno.
— No Golfo da Biscaia, os golfinhos são predadores e a indústria pesqueira os transforma em presa. Podemos discutir o que precisa ser feito, mas isso deve parar. Ponto final — afirmou Essemlali.
Fonte: O Globo
Imagem: Andrea Mantovani/The New York Times
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