Por Eduardo Freitas
http://clceduardo.blogspot.com.br/
Saga Maldita!...Património Cultural?
Actualmente deixou de se valorizar apenas as criações estéticas extraordinárias e idolatradas pelas elites -“as belas artes”-, para se valorizar de igual modo o “culto” e o “popular”, ou seja, o património das elites e dos grupos subalternos.
A patrimonialização cultural é um debate sobre os valores sociais, e um processo de atribuição de novos valores, sentidos, usos e significados a objectos, a formas, a modos de vida, saberes e conhecimentos sociais, é a recuperação das memórias do passado desde uma perspectiva presente, para explicar a mudança dos modos de vida e transmitir legados para o futuro.
A Faina
A história da pesca do bacalhau pelos portugueses (muitas vezes referida por a Faina Maior) aparece pela primeira vez referenciada em 1353, quando D. Pedro I e Edward II de Inglaterra estabelecem um acordo de pesca para pescadores de Lisboa e do Porto poderem pescar o bacalhau nas costas da Inglaterra por 50 anos. A necessidade de estabelecer um acordo indicia que esta actividade já se realizava em anos anteriores, e em tal quantidade, que justificava a necessidade de enquadrar esta actividade nas relações entre os dois reinos.
O método de pesca adoptado pelos portugueses foi introduzido com a compra dos barcos aos ingleses e manteve-se inalterado até aos anos 70 do século XX, método este baseado em pequenos dóris (botes), de cerca de 4 a 5 m de fora a fora, e que pesavam entre 80 e 100 kg, em que cada homem tinha duas linhas, com um só anzol, e pescava de pé. Para isca usava-se o clam, molusco importado dos Estados Unidos, cagarras e pequenas lulas ou peixes encontrados no estômago das primeiras capturas.
No entanto o isco preferido era a lula, e os pescadores portugueses tinham sempre a bordo uma linha para a pesca da lula guarnecida dia e noite, chegando mesmo a acordar toda a gente aquando da passagem de um cardume. A importância da lula é tal que o primeiro a pescar uma lula recebe o mesmo prémio que o primeiro a chegar a bordo com um dóri cheio: uma garrafa de aguardente.
Relatos de Uma Vida
Como era a vida a bordo?
- A vida a bordo era trabalhar, passar fome e ser maltratados.
E com o Capitão, como era o relacionamento
- Nós tínhamos de nos dar bem senão o capitão mandava-nos prender. Só nos ameaçava com prisão, com cadeia.
Tem conhecimento de alguns que tenham ficado presos a bordo?
- Atão! Só num navio que eu andei e numa só viagem de uma vez foram 7 presos a bordo. Só por reclamar do comer.
- Porquê ?... Porque às quintas-feiras o cozinheiro dava batatas aos pescadores. Duas
batatas a cada um. Mas repare... Vinha o ajudante (do cozinheiro) com o saco às costas, encostava-se ao caldeiro e ia o cozinheiro com uma faca e cortava o fundo ao saco. Descarregavam as batatas dentro do caldeiro -Não eram lavadas nem descascadas, iam com terra e tudo e cheias de grelos, iam a cozer em água salgada.
Depois, o cozinheiro, dava um prato ao postigo da porta com duas batatas. Nós arrancávamos os grelos para as podermos comer, parecia esparguete a arrancar.
Eram batatas direitas cosidas em água salgada, pior do que em terra os lavradores cozinhavam para dar aos porcos e às galinhas... os pescadores reclamaram e o capitão mandou-os prender. Por reclamar as duas batatas.
Como era a alimentação a bordo?
- O comer era sempre igual. Fritavam peixe para quinze dias, enquanto não acabasse comíamos sempre e não podíamos reclamar. Era xíxarros, cavala, sardinha... o mesmo peixe que usávamos para a isca... às vezes já depois de encher o porão com bacalhau fresco para salgar, também serviam bacalhau, do pequeno, se havia de ir borda fora... Já havia ordens para escolher o bacalhau por tamanhos, chamava-se "bitola" à medida mínima que era no mínimo um palmo de comprido, do lombo ao rabo .
- A água para beber levava uma medida de meio quartilho, uma canequinha assim pra beber e se lhe apetecesse outra já lha não davam. Banhos?... para lavar os pés davam um litro de água de 8 em 8 dias, e só quando havia água com fartura, senão lavava-se com água salgada, se nem água para beber havia...
- Aos pescadores que iam nos dóris, para arriar para fora nos botes, para 15, 20 ou até 30 horas que eles ficavam sozinhos no meio do mar, longe do navio e às vezes no meio do nevoeiro, davam uma manada de figos ou uma manada de azeitonas, ou duas postas de peixe frito e um pão, mais nada. Era fome!
Cuidados de Higiene e Saúde?
- Banho, nunca soubemos o que era tomar banho nesses seis meses que durava cada viagem.
- Chegava-se a trabalhar 20, 25 ou 30 horas seguidas sem paragens para dormir quando o peixe era muito.
Tínhamos que dar conta do recado. Muitas vezes os pescadores, depois de mais de 20 horas na escala e no trote (abrir, esviscerar e descabeçar o peixe) saíam para fora nos botes ainda a dormir para pescar outra vez... era por isso, talvez, que os homens se perdiam e já não voltavam quando o capitão mandava tocar o sino, a tocar a reunir os botes, que ouviam aquele sinal e vinham ao encontro do navio para serem içados para bordo. Era uma miséria. Alguns estavam tão longe que demoravam horas a vir. E o sino ia tocando para eles se orientarem até regressar o último. A vida do bacalhau até é triste falar nela, ao que nós passávamos lá...
- Os Capitães já se igualavam com estes ladrões que eram os chefes da equipa do bacalhau, já iam combinados com eles e pronto, a companha tinha que ser martirizada. E davam pancada nos pescadores, pelo menos em alguns. Que eu até pensei que podia ir preso toda a vida, mas se um capitão um dia me chama para me dar pancadas, já levava uma faca no bolso, já levava a faca de escala no bolso, se me viesse para me dar, cortava-lhe logo o pescoço rente, logo, e eu ia preso
para toda a vida mas também o cortava... Ai cortava.
Aquilo era uma vida escrava que até punha um homem tolo. Deus me livre!...
Voltando ao bacalhau
Após regressar ao navio com a captura, o peixe era atirado para dentro de umas caixas, as quêtes, com a ajuda de forquilhas, que se chamavam garfos.
Com o cair da noite e a recolha dos últimos dóris, sob a luz das lanternas de petróleo, baldeia-se o convés, lançando ao mar os restos, a que os pescadores chamam gueira, que no entanto, vai deixando o cheiro entranhado no navio, que todos menos os pescadores notam e referem. Mas sob a coberta o trabalho continua, depois de lavado, o bacalhau vai para o porão para ser salgado, e talvez este seja o trabalho mais duro a bordo, de gatas sobre o bacalhau que vão empilhando, os salgadores deitam mão cheia de sal atrás de mão cheia sobre o peixe, que passa então a ser "bacalhau verde". A memória da dureza deste trabalho ficou marcada na expressão popular que algumas mães usavam quando queriam ameaçar os filhos: “se continuas assim, mando-te embarcar como salgador”. O frio, o sal, as linhas, em suma toda a dureza do trabalho reflectia-se sobretudo nas mãos. Incham, enrijam-nas, enchem-se de frieiras, que com o tempo rebentam, transformando-se em chagas. Nos dóris o trabalho não permite o uso de luvas, pelo que os pescadores usam umas tiras de couro para proteger as palmas a que chamam néplas. Todas as tarefas passam-se entre as 4 horas da manhã e a meia-noite, sem feriados ou fins-de-semana, e mesmo o tempo de vigia é tirado ao tempo de descanso.
A assistência médica era, para ser simpático, mínima, e o facto de os engajados não passarem por nenhuma inspecção médica só aumentava as chances de os pescadores caírem doentes. Após a Grande Guerra, os pescadores, e os armadores, contavam com a presença dos barcos hospitais franceses, que acompanhavam a frota francesa para prestar auxilio aos pescadores portugueses.
Um médico francês a bordo do Saint Jeanne D’Arc escreve, em 1922, que de 13 doentes que hospitaliza a bordo, 5 eram tuberculosos, um outro morreu a bordo no 2º dia de outras complicações, e de vários que recusam ou vêem recusado pelos seus comandantes a hospitalização.
Por campanha, cerca de 15% dos pescadores eram vítimas de acidentes ou agravamento de situações clinicas que deixaram muitos incapacitados para sempre.
Esta situação sofre a primeira alteração em 1923, quando o barco Carvalho Araújo faz a primeira viagem de assistência e correio. O relatório efectuado pelo comandante vai ter os efeitos: o navio-hospital Gil Eanes.
1968 assinala o princípio do fim, com as primeiras diminuições das capturas, e as restrições à pesca nas água nacionais dos diversos países.
Paralelamente, após de anos sem perspectivas de qualquer outra saída, os pescadores começam a não querer embarcar por salários tão baixos, para correr tantos riscos, quando a vaga da emigração portuguesa e o início da actividade turística, pela primeira vez proporcionavam outras oportunidades e melhores salários.
A pesca do bacalhau à linha terminaria definitivamente em 1974, 3 anos depois de o último lugre ter partido pela última vez para os Bancos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário