terça-feira, 18 de setembro de 2012
CE - Crianças ilustram livro sobre ´causos´ de pescador
Sempre transmitidas pela oralidade, as histórias antigas dos povos do mar do Ceará começam a receber registros escritos por seus próprios coadjuvantes. Os causos do pescador Antônio Miolo, da Praia de Canoa Quebrada, ganham páginas de livro, com ilustrações feitas por crianças, sobre as peripécias porque passou o antigo trabalhador, entre o real e o fantástico.
Cada narrativa é ilustrada por desenhos feitos com lápis de cor pelos garotos Felipe, Lana, Tomas, Anderson, Lázaro, Pedro, Bruna e Lucas, da própria comunidade
Nelas as narrativas de um povo que vencia as adversidades sociais convivendo com a natureza e uma imaginação fértil. O livro "Miolo de Pote" traz um pedaço do saber e da experiência de vida dos pescadores que, assim como os sertanejos da região Nordeste, encontram no meio de um dia difícil algum motivo para uma boa risada.
Os causos do pescador Antônio Pereira da Silva, mais conhecido como "Antônio Miolo", davam-se geralmente quando ele voltava do mar e tinha a sua esposa Maria Borges, a "Maria Miolo", de testemunha (ou cúmplice). Como lá deixaram seus filhos, netos e bisnetos, as histórias não cessam.
Labuta
Certo dia, voltando de uma trabalhosa labuta no mar, Antônio Miolo encostou na areia com a jangada cheia de peixe. O que não ficou para comida em casa, foi vendido às mãos de comerciantes. E como pescador completo não apenas pesca, mas "trata" (corta e abre) o produto, pediu à mulher uma bacia e foi à mesa. Quando abriu o bucho de um cação de quase cinco quilos, deixou cair debaixo da mesa um punhado de ovas do peixe.
Colocou tudo que tinha em mãos para cozinhar, mas reparou que sua galinha chocadeira ciscava onde caíram as ovas. Dias depois, no meio de um domingo, seu Miolo percebeu que da ninhada da galinha Griselda havia cinco novos pintinhos, quatro deles "caçãozinhos, balançado as barbataninhas e soltando uns piadinhos diferentes".
Os registros revelam um homem que convivia com a natureza, tinha uma família grande, mas com seus "acontecimentos" não deixava a rotina tirar o brilho das histórias. As idas e vindas para o mar eram entrecortadas por histórias vividas a maior parte em casa, em meio às dunas e falésias de Canoa Quebrada.
Luta
Como no dia em que conseguiu roubar tanto mel de um cacho de abelhas que foi possível encher um balde. O machado usado na "luta" com as abelhas ainda estava sujo de mel e ficou em cima da mesa. O balde com o mel, deixou no telhado, para as formigas não alcançarem. Pois tanto alcançaram apenas o machado melado na mesa que deixaram somente o cabo, devorando a ferragem.
Ilustração infantil
As histórias foram organizadas pelo arte-educador Tércio Vellardi, presidente da Organização Não Governamental (ONG) Recicriança, e pelo jornalista e historiador Túlio Muniz. Cada narrativa é ilustrada por desenhos feitos com lápis de cor pelos garotos Felipe, Lana, Tomas, Anderson, Lázaro, Pedro, Bruna e Lucas. À exceção de Túlio, todos moram na comunidade dos Estêvão, um povoado na Praia de Canoa Quebrada e onde morou o pescador Antônio Miolo.
"Podemos também dizer que a engenhosidade de Miolo denota, sobremaneira, a criatividade dos habitantes locais, profundamente marcados pela oralidade indígena que cria e recria seus personagens num universo mágico, fantástico", afirma Túlio. O livro tenta materializar o que a oralidade transforma a cada nova geração. E pela própria comunidade dos Estêvão ficam outros resquícios da presença de Antônio Miolo.
Como a falésia em que ele batizou de "Mentira" um ovo depositado por um pássaro Albatroz que, horas antes, disputou no mar com ele um peixe fisgado no anzol. "Esta área é pra ficar isolada, vamos proteger o nascimento deste passarinho e batizá-lo com o nome de ´Mentira´, pois ninguém vai acreditar que pesquei um pássaro com meu anzol", teria dito Antônio Miolo.
Perda
O velho pescador morreu no ano de 2004, aos 85 anos, sem a mesma animação quando contava suas histórias desde que sofreu uma "trombose" que o deixou debilitado até a morte. No entanto, seus causos não morreram, e ainda hoje são contados por gente como Girlene Pereira dos Santos, que é sua neta e, também, trabalha como arte-educadora na ONG Recicriança.
Registros do saber reafirmam a cultura
A sabedoria popular, a cultura e as histórias de um povo são geralmente repassadas por meio da oralidade. Essa transferência pode durar gerações, ou não. E para que muitos dos seus valores não morram na praia, as comunidades dos povos do mar no Ceará têm usado as novas tecnologias ao seu favor no melhor estilo "vamos valorizar, antes que nos esqueçam".
Os causos de "Antônio Miolo", davam-se geralmente quando ele voltava do mar e tinha a sua esposa, a "Maria Miolo", de testemunha (ou cúmplice)
E a permanência dos saberes torna-se, também, uma forma de reafirmar a identidade e os valores culturais. A preservação do meio ambiente, do artesanato e, também, da medicina natural são os principais instrumentos de valorização.
Comunidades
Os registros mais evidentes têm se dado em comunidades indígenas do litoral, especialmente por serem essas comunidades ameaçadas do seu direito natural à terra, em que o registro de seus eventos e objetos culturais é uma ferramenta de luta pela permanência no lugar.
Assim se dá com os povos indígenas litorâneos da etnia Tremembé, no Distrito de Almofala, localizado no Município de Itarema. Lá, registro audiovisual, bem como em livros e fotografias, tem revelado a cultura do povo. Outros trabalhos no mesmo sentido são feitos em comunidades como a Lagoa Encantada, dos índios Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz.
Resgate
Quando Antônio Pereira da Silva, o Antônio Miolo, faleceu em setembro de 2004, a comunidade dos Estêvão só pensou por alguns instantes que morriam também as histórias do nobre pescador que gostava de dançar o coco e contar as suas aventuras. No segundo momento surgiu a ideia de registrar para a eternidade um punhado das muitas histórias contadas e dramatizadas pelo pescador.
Isso coube à ONG Recicriança, atuante há duas décadas na mesma comunidade, sendo reconhecida nacionalmente pelo trabalho de arte-educação com as crianças da Área de Proteção Ambiental (APA) de Canoa Quebrada.
Os familiares de Antônio Miolo relembravam as histórias do pescador e recontavam a Tércio Vellardi, que as narrou para o livro "Miolo de Pote".
A Associação reuniu algumas das crianças que fazem parte dos projetos para que reproduzissem, à maneira delas, em desenhos algumas histórias escolhidas para o livro "Miolo de Pote". O livro ainda traz joguinhos de cruzadas, jogo de erros e, após cada narrativa, uma dica ambiental também.
Preservação
A preservação do meio ambiente é uma das principais missões da ONG Recicriança. Ambientalista e presidente da Associação, Tércio Vellardi, desenvolve com parceiros da própria comunidade projetos de educação ambiental e de conservação dos recursos naturais.
A instituição recebe estudantes de vários Municípios do Litoral Leste para realizarem trilhas ecológicas com aulas em campo.
A entidade também atua em parceria com outros organismos, como a Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), atuante, dentre outras atividades, no resgate de mamíferos marinhos nas praias do Ceará.
FIQUE POR DENTRO
Histórias de pescador da Vila dos Estêvão
O "Livro Miolo de Pote - Causos do Pescador Antônio Miolo", foi lançado, na última quinta-feira, na sede da Associação Recicriança, idealizadora do projeto e Organização Não Governamental (ONG). A Associação fica localizada na "Vila dos Estêvão", a mesma em que viveu Antônio Pereira da Silva, o seu "Antônio Miolo", com sua esposa, Maria Borges de Castro. Lá, eles tiveram sete filhos, 26 netos e dez bisnetos. "Miolo" ficou conhecido por ser um exímio pescador e pelas histórias que contava. O livro é um projeto do Recicriança organizado por Tércio Vellardi e Túlio Muniz, com ilustrações das crianças Felipe, Lana, Tomaz, Anderson, Lázaro, Pedro, Bruna e Lucas, que são moradoras da própria comunidade, editoração eletrônica de Gilberlânio Rios. A obra é composta por quatro capítulos. Foram divididos com os títulos de: "As ovas de peixe", "O Porco", "O Albatroz", "O Rato", "O Fogão Velho", "A Vaca", "A Muriçoca", "A Melancia", "O Joanete" e "O Machado". A Associação Recicriança têm vários projetos na área de educação ambiental, desenvolvido na comunidade dos Estêvão. Entre as atividades e trabalhos sociais desenvolvidos podem ser citados, como exemplo, a campanha de preservação das dunas e falésias da Praia de Canoa Quebrada. Em outra frente, priorizando o bem estar das crianças e adolescentes da região, agem no combate à exploração sexual infantil.
Mais informações:
Associação Recicriança Vila dos Estêvão - Canoa Quebrada/Cidade de Aracati www.recicrianca.org.br
REPÓRTER
MELQUÍADES JÚNIOR
Fonte: Diário do Nordeste
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