sábado, 24 de setembro de 2011

“Nosso mar” não é exato


Na Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, há uma infinidade de “nossos mares”, cada povoado indica o pedacinho que explora do oceano como extensão de si. Embora a expressão possa parecer apropriação de um espaço da natureza, a extensão do significado para os moradores locais vem da maneira como se relacionam com a região em que vivem e, a pesca que desenvolvem. Tal entendimento sobre o espaço que ocupam leva inclusive à contestação de normas estatais que não consideram em seus artigos, a experiência e os saberes humanos. Um estudo realizado pelo pesquisador Gustavo Moura por meio do Programa Ambiental de Ciências Ambientais (Procam) da Universidade de São Paulo (USP) revela que o distanciamento entre a oceanografia e ciências que versam sobre o homem (como indivíduo e em sociedade) possibilita conflitos de interesses entre medidas estabelecidas pelo Estado e o que a população local entende como correto para sua região. Gera, ainda, a exclusão, uma vez que, se atém a políticas públicas autoritárias subsidiadas por conhecimento científico que não atendem aos reais anseios dos moradores locais.

O diálogo inexistente entre a oceanografia e a realidade humana apontam para a conformação de uma ciência falha e tendenciosa. A oceanografia é o campo de estudo que busca compreender, descrever e prever os processos que ocorrem no oceano. Moura diz que não se pode estudar tais processos e desconsiderar a experiência das comunidades que interagem cotidianamente com “os mares”. Pois a partir da falta de interação entre os dois campos, surgem medidas como a política de defesos do Ibama, a qual proíbe pesca e caça predatórias determinadas épocas do ano,e que originam resistência da população local.

Na Ilha dos Marinheiros, segundo distrito do Rio Grande, localizada na Lagoa dos Patos, a comunidade da Coreia resiste em largar suas tradições e seguir sem contestação à política dos defesos e incorre em desobediência civil. Para o pesquisador não é uma simples questão de optar por seguir tradições ou a norma estabelecida, é uma questão de bom senso. Pois, a natureza não é uma matemática exata que segue o calendário humano. Entender que em todos os anos a melhor época para a pesca vai de 01de fevereiro a 31 de junho, é não levar em conta o ciclo da natureza. Além de arrogância humana de que tudo possa ser controlado por meio de cálculos científicos.

A questão, no entanto, não é se indispor com as ciências exatas ou descredibilizá-las. O conhecimento científico não deve ser desprezado em nenhum momento. Mas também não deve servir como fonte única para qualquer tipo de lei ou ato estatal. Segundo o oceanógrafo, “ os pescadores, melhor do que ninguém, sabem e reconhecem de acordo com sinais naturais ou sinais de memória (transmitidos de pai para filho) quando os peixes e camarões tem o melhor tamanho ou quando ainda não é época para a pesca. E entendem que seriam os maiores prejudicados em sua sobrevivência se acaso praticassem pesca predatória.”

De acordo com a pesquisa, a marcação científica de tempo linear e fixo para a época da pesca traz consequências muito mais agravantes do que o tempo natural seguido pela tradição. Pois, mesmo em um espaço que representa apenas 10% da região de pesca local, desrespeita a heterogeneidade do ambiente, uma vez que determina onde, como e o quê deve ser pescado, sem considerar que a região ou que a safra da pesca possa se antecipar ou ocorrer mais tarde dependendo de ano para ano.

Além disso, a participação na vida local e um contato mais aprofundado com a cultura popular possibilita a percepção de que não são apenas as leis naturais que regem a pesca, mas também, questões religiosas e de mercado. O pesquisador relata que “muitos, por exemplo, não pescam durante a semana da páscoa.”

Sob a visão dos moradores locais de que a Lagoa dos Patos é o “nosso mar” há todo um estudo e literatura oral transmitida sobre como a forma de correr da água, a movimentação da lua, a mudança de posição das estrelas e muitos outros fatores podem influenciar no mar e na pesca. E com isto, a possibilidade de fazer um calendário que observa a dinâmica ambiental melhor inserido no cotidiano dos moradores da Lagoa dos Patos.

Fonte: Agência Universitária de Notícias (USP)
Por Sandra Oliveira Monteiro
sandra.monteiro@usp.br


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