Por Pedro Henrique e Leandra Gonçalves
No limiar do novo século conviveram à entrada do neoliberalismo e a chamada transição democrática no continente latino-americano. O Brasil experimentou o receituário do Consenso de Washington em um grande processo de privatizações. O Estado precisava ser pequeno e, ao mesmo tempo, atrair grande volume de capital. No campo da questão pesqueira a história não foi diferente, senão trágica, como verdadeira farsa.
A história presente nos ajuda a compreender que o notório problema da gestão governamental da pesca, por muitos uma “desarticulação institucional”, não é um problema técnico, mas o resultado de algumas décadas de disputa entre grupos de interesse sobre o paradigma do qual a gestão da pesca no Brasil deve ser feita no Brasil: ora dominam os “desenvolvimentistas” e ora os “preservacionistas”. A disputa levou a um constante re-ordenamento institucional das tarefas, o que foi agravado no contexto de enfraquecimento do Estado no final da década de 80, e assim as competências/instrumentos de gestão continuam até hoje oscilando de um órgão para o outro. Nesse jogo do “empurra-empurra”, é o capital privado que sai ganhando, produzindo e re-produzindo seus lucros.
Em 2009 é criado um novo Ministério – gestado desde a criação da antiga Secretaria Especial da Aquicultura e Pesca, no primeiro ano do Governo Lula. O Ministério da Pesca e Aqüicultura foi criado visando uma gestão pesqueira eficiente, para um setor que andava abandonado - ou estrategicamente descuidado, mas que poderia beneficiar pelo menos 3 milhões de pescadores, que aguardavam do Presidente Lula e, hoje, da Presidente Dilma, uma maior atenção.
Mas, os grupos de pescadores têm testemunhado o oposto. Recém criado, uma das ações do novo ministério foi abrir o mar para empresas estrangeiras virem aqui levar nossos recursos marinhos. E, ainda, patrocinar uma verdadeira corrida para sermos uma potência pesqueira nunca antes vista na história deste país.
O Brasil possui cerca de 9 mil km de litoral tropical banhado pelo Oceano Atlântico. É nessa região que vivem cerca de 25% da população brasileira. Proporcionalmente a estes dados, a atividade pesqueira não é, para alguns, financeiramente representativa para economia nacional.
Produção
Temos hoje uma produção pesqueira de 1 milhão de toneladas, aparentemente pouco se comparado aos vizinhos Chile (2 milhões de toneladas) ou Peru (9 milhões). No entanto, não é possível comparar os recursos pesqueiros disponíveis aqui com os dos demais sul-americanos, ou ainda de outros territórios.
Esses dois países, em seu conjunto, têm uma costa equivalente em extensão à do Brasil e possuem um dos mares mais ricos em produtividade pesqueira do mundo. Em parte conseqüência da Corrente de Humboldt que traz as águas frias carregadas de plâncton desde a Antártida e, ainda, ao fato de ser essa corrente do tipo revolvente, permitindo o afloramento dos sedimentos ricos em nutrientes erodidos da Cordilheira dos Andes. É uma condição sui generis que não existe na costa Atlântica da América do Sul e, menos ainda, na sua porção tropical. Portanto não há vergonha para o Brasil, no fato de produzir menos pescado que os “pequenos” Peru e Chile. Afinal, apesar de extensa, a costa brasileira, assim como demais regiões tropicais, apresentam uma alta diversidade de espécies, mas não necessariamente quantidade de indivíduos de cada uma delas.
A pesca extrativa marinha no Brasil consiste na captura de 507.858,5 toneladas de pescado ao ano (IBAMA, 2005), distribuídas entre os 17 Estados da Federação que são banhados pelo mar. Pouco mais metade da pesca brasileira é extrativa e marinha. No mesmo ano de 2005, a captura marinha mundial foi de 84 milhões de toneladas (dados da FAO), ou seja, o Brasil contribui com pouco mais de 1% do total da pesca marinha do mundo.
De maneira geral a pesca é praticada por grupos sociais com grande vulnerabilidade sócio-territorial, impactados com a apropriação dos recursos naturais pelo grande capital e pela exposição às injustiças ambientais. Seja em Estados como a Bahia e o Maranhão, que tem 100% de produção nas mãos de pescadores artesanais, ou nos Estados do Sul e Sudeste, aonde há grande número de trabalhadores assalariados da pesca (IBAMA, 2005).
A pesca é, ainda, amplamente praticada por trabalhadores desempregados/empregados de outros setores em busca da subsistência, ou complemento de renda. São 834 mil empregos diretos, 2,5 milhões de indiretos e uma renda anual de 4 bilhões de reais, além da incalculável influência na segurança alimentar e nutricional de muitas populações (SEAP, 2007).
Em suma, a pesca no Brasil, antes de representar um setor de produtividade estratégica para a nação é um setor que garante a subsistência, e fonte de renda, para uma boa parcela da população menos favorecida do país.
O Brasil pode e deve produzir mais pescado – sobretudo estimular o consumo diversificado de espécies locais - e garantir o sustento dos pescadores artesanais. Porém para evitar o colapso dos estoques pesqueiros ameaçados como do Atum e outros, por exemplo, a sua primeira preocupação deveria ser para com a preservação e manejo sustentável do recurso, já tão ameaçado tanto em águas marinhas como continentais.
Um Ministério da Pesca, em um grande país como o Brasil, onde todo mundo sabe quão caótica e depredadora é a pesca; onde os estoques naturais já caíram muito; onde se concentram no mar e nos rios enormes ameaças decorrentes da contaminação tóxica ou das mudanças climáticas; não pode ter como primeiro objetivo o simples aumento da produção. E, sobretudo, atuar sem envolver seus principais atores.
Ameaça
Uma parceria inédita confirmada entre a brasileira Norpeixe e a japonesa Japan Tuna vem anunciando que levará o Brasil a se tornar protagonista na pesca oceânica de atum – uma espécie ameaçada. A empresa japonesa com larga experiência no setor rapidamente arrendou 10 barcos brasileiros para pescar em nossas águas. Com o acordo, o País poderá capturar até 68 mil toneladas do pescado por ano, ante as 4,1 mil toneladas registradas hoje. Mesmo porque nossos amigos nipônicos já depredaram seus recursos vivos marinhos, e agora também convivem com os que se contaminaram radioativamente, pós-desastre de Fukushima, buscam em águas brasileiras pescados para alimentar o apetite – de fome e ganhos - de sua população, preocupados com a falta de pescados saudáveis e não-contaminados. Como o consumo das espécies de atum no Japão é maior do que seus barcos são outorgados a pescar, os objetivos dessa indústria pesqueira passaram a incluir a cota de outros países (ou melhor, a comprar o atum que outros países pescam). Nessa hora, o Brasil apresentou-se como um sócio de qualidades sem par.
Dessa forma, o governo brasileiro não está resolvendo o problema da falta de governança pesqueira, apenas terceirizando a exploração de seus recursos naturais, já deteriorado, para empresas estrangeiras. O Japão já pegou sua fatia no mercado, quem será o próximo?
Quando a lógica do mercado subverte o julgo da política na formulação de políticas públicas governamentais a fábula está denotada. Não podemos aceitar que a título de se criar uma governança sobre o setor pesqueiro o Governo Federal seja mecenas do avanço neoliberal, sobretudo por empresas estrangeiras – não só da pesca, mas também da exploração de gás e óleo – em nossos mares. O poder público não pode ser sócio na produção, distribuição e do consumo de mercadorias impostos pelo grande capital.
É preciso que seja garantido aos atores atingidos pelo brutal processo de injustiça ambiental uma mobilização forte e seu direito de constituição como grupo de resistência à opressão econômica e sócio-territorial.
O Ministério da Pesca, hoje moeda de troca da presidência, tem representado a legitimação dessa política de liberalização de nossos mares às empresas pesqueiras, em sua maioria multinacionais. Os pescadores tradicionais hoje lutam não apenas pela sobrevivência da pesca, mas também pela não extinção da categoria. Quem se somará nesta luta pela biodiversidade ameaçada?
* Pedro Henrique é historiador, especialista em política urbana pelo IPPUR/UFRJ, e mestrando em planejamento e política urbana IPPUR/UFRJ. Integra a Coordenação de campanha do Greenpeace Brasil.
* Leandra Gonçalves é bióloga, mestre em ecologia e comportamento animal. Integra a Coordenação de campanha do Greenpeace Brasil.
Fonte: Caros Amigos
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