O atum rabilho, o maior dos atuns, é das espécies marinhas mais ameaçadas. A União Europeia quis proibir o seu comércio a partir de 2011, mas os japoneses, porque precisam dele para o sushi, avisaram logo que não acatariam a medida, caso avançasse. Não avançou. Politiquices à parte, os pescadores açorianos vão para o mar todos os dias, ao atum. Nesta altura só há bonito. O voador, o patudo, o albacora e o rabilho já passaram pelo mar dos Açores, a caminho do Mediterrâneo. Passarão outra vez, no ano que vem. Dizem os estudiosos das artes de pesca artesanal do arquipélago que a captura do atum, aqui, é sustentável e não põe em causa a continuidade da espécie. A bordo da traineira de um pequeno armador de São Miguel, vimos como se pesca o bonito. E como o atum se atrai com isco vivo, na véspera também fomos à apanha do chicharro.
A vila de Água de Pau, na ilha de São Miguel, nos Açores, acorda cedo. Às cinco da manhã, já a Praça da República serve de ponto de encontro para a recolha de homens, que esperam transporte para o cais. O mar ministra-lhes o alimento. Todos os dias são de embarque para os que trabalham nos pequenos atuneiros; nos grandes, é quase sempre semanal e o regresso a terra acontece cinco, às vezes sete dias depois. Os barcos da ilha, nesta altura, «vão» ao bonito, o mais pequeno e abundante dos atuns. Se as marés forem generosas, «é capaz de haver bonito o ano inteiro» nestas águas do Atlântico, mas este ano, dizem os pescadores, tem sido «excepcional».
No cais, duas traineiras cabinadas deslizam pela rampa em direcção à água. A tripulação da Manuel Elias, seis homens, aguarda o mestre João Machado, que acaba de seguir na sua traineira de boca aberta para ir buscar o isco para o atum. O isco é chicharro vivo, que depois de capturado é mantido na água do mar, preso numa gaiola quadrada de ferro e arame. É que a pesca do atum tem outra associada, a do isco: chicharro, sardinha ou cavala, conforme o que mais houver. Pescar atum é trabalho acrescentado e gastos dobrados em gasóleo. O mestre regressa ao cais já com o chicharro dentro do tino, um tanque com água para o isco permanecer vivo. Homens a bordo, a traineira abala em direcção à parte ocidental da ilha, a ritmo acelerado, sempre paralela à costa, a duas milhas de distância desta. A viagem parece uma eternidade. Por ainda ser noite, nada em terra, lá longe, nos serve de referência do que já avançámos. Alguns homens aproveitam para dormir mais um pouco.
Amanhece. A traineira alcança finalmente a zona de captura. Está frio. A humidade «fura» a barreira dos fatos oleados. O desconforto prolonga-se por mais tempo do que o corpo parece conseguir aguentar, mesmo assim há quem mantenha os braços nus. O vigia sobe para cima do tino, o ponto mais alto da embarcação, e começa a procurar os sinais naturais que indicam a presença do atum. É por aqui que andará, mas João Machado não pára o barco. Não, enquanto os sinais não aparecerem. Andamos há duas horas às voltas para aferrar e nenhum sinal se vislumbra: nem gaivotas a sobrevoarem a tona da água, nem bocados de madeira à deriva, nem golfinhos aos pares. Os outros pescadores ajudam José Baptista na vigilância, olhando para um lado e para o outro. Quando o barco passa a povoação de Mosteiros, numa das extremidades da ilha, dá a volta e faz o percurso inverso até Feteiras. Sempre assim, num «cá e lá», até «o bonito decidir subir».
O momento há muito esperado só acontece perto das duas da tarde, já a companha havia acalmado o estômago com carcaças, queijo da ilha e laranjas, e é anunciado aos berros pelo vigia: «Pára o barco, pára o barco.» José Baptista aponta para uma mancha de gaivotas na água. João Machado desliga o motor e com o leme e a força da maré governa o barco até à zona indicada pelo vigia. A dada altura, o mestre olha para o tineiro António Carreiro e acena-lhe com a cabeça. As palavras aqui nada acrescentam, todos os homens sabem o que devem fazer e o tineiro, o responsável pelo tino, não é excepção. Com a ponta da beata apagada pelos salpicos da água no canto dos lábios, António mergulha o camaroeiro no tino, mete a mão ao chicharro e aos três e quatro de uma vez atira-os para a água. Vivos, como exige a pesca do atum; se mortos, «o atum rejeita». Mas o bonito não está a querer morder o isco. Não morde no primeiro lanço, não morde no segundo, não morde ao fim de meia hora a devolver o chicharro ao mar. «Hoje está mais desconfiado do que nunca. Ou isso ou está de barriga cheia. Não quer subir», adivinha António, depois de apurar com o mestre João se deve ou não parar o embuste. O motor arranca. Vigilante a postos, inicia-se mais uma busca para lá e para cá, entre Feteiras e Mosteiros. O tempo parece que pára e só recomeça quando José Baptista grita outra vez «pára o barco». Grita duas, grita três, grita quatro vezes. A dada altura perde-se a conta aos falsos alarmes.
Habituados a sorte imprevista, não há alarme falso que definhe estes homens, nascidos e criados na pesca, todos eles, os novos e os mais velhos. O tineiro, por exemplo, não conhece outra vida desde os 8 anos. A pescaria roubou-lhe anos de escola. «Era assim deste tamanho [coloca a mão na cintura] quando comecei a andar com o meu pai nesta vida. É dura, mas também é muito rica. O mar é coisa muito rica, tem muitos tesouros.» Aos 65 anos, e apesar dos perigos inerentes à profissão, António Carreira não perspectiva uma vida em terra, descansada, que não o obrigue a levantar-se às quatro e meia da manhã para embarcar, sem saber quando regressa. «Ia fazer o quê? A gente habitua-se a isto e não quer outra coisa.» Sustos já os teve em dose generosa, embora nenhum o tivesse levado a pensar que era o fim.
Emanuel Machado, o filho mais velho de mestre João Machado, diz também que outra coisa não sabe fazer nem quer. Tem 41 anos e a sua própria traineira, a Rosária Maria, onde partimos ontem ao fim da tarde para a pesca do chicharro. Hoje, como de vez em quando, ajuda o pai na pescaria do atum. Há profissões que uma vez abraçadas por uma família «agarram» as gerações seguintes. A de pescador, indubitavelmente, é uma delas. O filho de Emanuel, Mickael, tem 21 anos e segue há alguns os desígnios do pai e do avô. Não tarda estará a trabalhar na sua própria embarcação e a contratar os seus homens. É que Emanuel está a tratar do futuro do filho: «Mandei construir uma traineira para ele. A gente, se pode, deve dar uma mão aos pequenos.» A filha não a quer nesta vida, porque o mar, conhece-o bem, «não é meigo» para as mulheres.
O atum «salta» do mar para dentro do barco
«Pára o barco, pára o barco», desta vez o alarme não tem resultado inútil. Dezenas de gaivotas disputam uma pequena área. O atum, é mais que certo, subiu. Enquanto o tineiro solta o chicharro, João Machado acciona os «chuveiros», finos jactos de água que saem de um mecanismo instalado a toda a volta do barco, que em contacto com a água do mar têm o efeito de chuva miudinha: «É para fazer sombra. Assim o atum não consegue ver-nos», explica o mestre. «Comeu. O peixe comeu», alguém berra.
Emanuel captura o primeiro bonito desta já longa e até agora infrutífera empresa. Em segundos, os bonitos saltam directos para debaixo do braço dos pescadores. Salta um, salta outro e mais outro. O atum não salta, mas essa é a ilusão criada pelo puxão repentino da linha. Assim que o peixe abocanha o anzol, confundindo-o com o isco, o pescador sente a presa e numa puxada única, firme, leva-a até debaixo do braço. Aperta-a para não escapar e solta-a da barbela, atirando-a para o convés, onde fica a saltitar de aflição até ao sufoco. Tudo à volta, a amurada, a roupa, os cabos, fica salpicado do sangue que os bonitos libertam das guelras. A alguns metros de distância, outras embarcações têm sorte igual. O bonito está à superfície e há que aproveitar a fortuna. João Machado ginga a embarcação, mantém mão firme no remo para não sairmos desta parte de mar onde os bonitos parecem surgir às centenas à tona da água. O mestre é o único da companha sem cana nas mãos - a arte utilizada na captura do atum nos Açores é a de «salto e vara», que consiste numa cana com linha e anzol. Com ela, por incrível que pareça, Emanuel já capturou um patudo de 320 quilos. «Lembro-me bem desse dia, como se fosse ontem. Foi em 1999, estive cinco horas e meia a trabalhar com o peixe para ele subir.» Na lista de recordes de Emanuel constam mais dois patudos, um de 140 quilos, outro de oitenta.
Diz quem pesquisou as artes de pesca artesanal do arquipélago que o «salto e vara» permite uma captura sustentável, uma vez que não envolve mais do que um homem, uma cana, um peixe. «É uma pescaria direccionada à espécie-alvo, não tendo as implicações de outras, que arrastam tudo, incluindo o que não se quer e o que não se pode pescar», esclarece o ambientalista da delegação regional dos Açores da Quercus, Luís Rodrigues, que há uns anos integrou a equipa do POPA, Programa de Observação para as Pescas dos Açores, no âmbito da qual teve a oportunidade de confirmar as técnicas «altamente selectivas e até meio arcaicas» utilizadas pelos açorianos na captura do atum. Esta característica valeu a muitas embarcações de pesca dos Açores e a alguns produtos ou derivados de atum a certificação Dolphin Save, atribuída pela ONG Earth Island Institute com base nas observações realizadas pelo POPA. (Dolphin Save é um conceito de pesca que surgiu nos anos 1990, por pressão dos consumidores e das associações ambientalistas mundiais, escandalizados com a matança anual de 120 mil golfinhos que ficavam presos nas redes de cerco de pesca do atum, no oceano Pacífico).
Familiar de pescadores açorianos, Luís Rodrigues acompanha as dificuldades sentidas por quem depende do mar, desde logo impostas pelas quotas, pelo tipo de frota e pela falta de um entreposto frigorífico para armazenar o pescado. «As embarcações são na sua maioria bocas abertas ou cabinadas, de pequenas dimensões, não têm capacidade para permanecer mais do que 24 horas seguidas no mar. Mesmo que capturassem toneladas de peixe, a região não lhes oferece condições para conservar e escoar o produto.» É por essa razão, aliás, que os grandes atuneiros como o de Luís Sobral, de Água de Pau, vão descarregar à ilha do Pico.
Luís Sobral é o que os pescadores mais modestos chamam de «grande armador», mas ele recusa o epíteto e, mais comedido, assume-se como «médio». A sua embarcação está longe de integrar a lista dos gigantes do atum, que tantas vezes se cruzam com o seu barco a caminho das Canárias. Os seus homens passam três, quatro ou cinco dias no mar sem regressar a terra, e descarregam as quarenta ou cinquenta toneladas de peixe, nesta época bonito, no porto do Pico, justamente porque as duas lotas existentes em São Miguel, uma em Rabo de Peixe, outra em Ponta Delgada, não conseguem albergar toda a safra dos atuneiros de maiores dimensões; e a dos pequenos, desde que não ultrapasse os mil quilos por barco.
Em todo o caso, dias há de jornadas estéreis ou pouco produtivas, que não conseguem aproximar-se dos mil quilos de atum. Como este, para João Machado, que em tempos pescou um patudo de 230 quilos e hoje regressa a terra apenas com cem quilos de bonito, depois de 12 horas no mar. «Hoje o bonito não cooperou.» Enquanto a companha retira a traineira da água, arrastando-a pela rampa até lugar seguro, João Machado despe o oleado e segue para o posto de recolha, onde um funcionário da Lotaçor (empresa gestora das lotas no arquipélago) aguarda para pesar o peixe e o transportar em caixas para a lota de Ponta Delgada para aí ser leiloado amanhã de manhã. «A sorte na pesca não é certa. Se calhar, o barco vem cheio amanhã.» Veio, com oitocentos quilos de atum. Do isco que sobrou, parte foi devolvida ao seu habitat, outra reservada para transformar em engodo - o isco que se dá ao chicharro que servirá de isco ao atum. Destino cruel o do chicharro: além de alimento para atum, é comido, em forma de farinha, pela sua própria espécie.
«Eu não posso fazer como o meu filho, que trocou o atum pelo chicharro. Eu não tenho licença para pescar chicharro», desabafa o mestre João, a caminho da carrinha com que levará os seus homens a casa. O filho Emanuel, é certo, trocou o atum pelo chicharro, mas foi porque o limite de uma tonelada de atum imposto em 2010 pela fábrica de conservas «quase não cobre as despesas de ir ao mar duas vezes», uma para apanhar o isco, outra para apanhar o atum. Enviá-lo para a lota deixou de ser rendível: «Está a quarenta, às vezes setenta cêntimos o quilo». Vendê-lo à conserveira «é mais lucrativo»: «Dão-me 1,5 euros por quilo.» Mesmo assim, pouco, por causa do limite de mil quilos. Emanuel fez as contas e decidiu mudar. «O chicharro está a dar mais do que o bonito.» A quota máxima para a captura de chicharro é de trezentos quilos por embarcação, o que para este pescador «acaba por compensar».
Ontem à tarde, quando partiu do cais da Caloura para o mar com os seus 14 homens, na Rosária Maria, Emanuel já não foi ao bonito. Foi ao chicharro, para vender em lota. Requer o mesmo trabalho e a mesma arte que a pesca do chicharro vivo para isco. «É exactamente a mesma coisa», a diferença está no estado do chicharro depois de capturado, que no primeiro caso deixa-se morrer e no segundo mantém-se vivo. «O que vamos fazer é o que faríamos se fôssemos à pesca do isco», justifica-se Emanuel assim que chegamos ao cais para embarcar, pensávamos, para a pesca do isco.
Do bonito para o chicharro
A traineira parte em direcção a Vila Franca do Campo. De um lado, o negrume começa a tomar conta do horizonte, porque anoitece; do outro, ao longe, a iluminação das ruas forma manchas reluzentes em vários pontos. A viagem é curta até ao largar da rede. Curta e ainda seca, apesar de ameaçar chover. O frio é de cortar à faca. Hoje não há luar nem estrelas, o que é bom, porque «com a lua, o chicharro vê a "relentia" da rede e foge». A escuridão seria agora total, não fosse a luz amarelo-forte do holofote que João Machado, o pai de Emanuel, transporta num pequeno barco que segue atrás da traineira. O sonar, aparelho que detecta o cardume, indica que este local está cheio dele. O filho dá sinal ao pai. João lança então à água o engodo, uma mistura de batata com farinha de chicharro, para atrair o próprio chicharro. Faz um lançamento, faz outro, e outro e mais outro, sem parar o barco. João Machado, não o pai, mas o irmão de Emanuel que tem o nome do pai, segue também a bordo para «ganhar mais algum». É o único da tripulação que não é pescador a tempo inteiro - durante o dia faz queijos e à noite vai à pesca no barco do irmão mais velho. Explica o que o pai está a fazer: «Se o chicharro não vier acima daqui a bocado, não vale a pena desperdiçar mais engodo neste sítio.» O peixe sobe e os homens lançam a rede ao mar - a arte utilizada nesta captura é a de cerco, tem «110 braças de comprido e 27 de altura» (uma braça é uma medida náutica correspondente a 1,829 metros). Em vinte minutos o peixe fica cercado. Os pescadores começam a içar a rede, metros e metros dela sem peixe. Por fim, uma mancha prateada. Os homens continuam a puxar. O chicharro já se vê, aos saltos, preso na rede.
João filho torce o nariz quando olha para dentro do tino sem água, onde o chicharro capturado é colocado (aqui está a diferença: se o chicharro fosse para isco, o tino estaria cheio de água do mar). «Ainda falta muito para os trezentos quilos. Aqui deve ter uns cem, se tanto.» Larga-se a rede mais uma vez, noutro local marcado a vermelho no sonar. A chuva começa a cair, inicialmente tímida, em pouco tempo é chuva da grossa tocada a vento. A embarcação afocinha na água e segue o embalo nada suave da ondulação. Ala-se a rede. Mais cem quilos de chicharro. Não chega. Outro lanço, um pouco mais à frente. João continua a engodar. Enfia uma pá num saco de plástico e atira o isco ao peixe. Um grande atuneiro da Madeira que até então víamos ao longe aproxima-se e a certa altura está demasiado perto. Emanuel não gosta. O pescador fala com os madeirenses. Não percebemos o que diz, mas José Botelho traduz: «O atuneiro está quase em cima da gente, ainda nos fura a rede.» A troca de palavras assume tom exaltado. Emanuel parece zangado, pede aos madeirenses para se afastarem um pouco. José explica: «Eles andam ao isco para dar ao atum. Na Madeira não há, eles têm de vir buscar o chicharro aqui.» E o chicharro que não há meio de aparecer. Continua a chover e a fazer frio. «Ele há-de subir, é teimoso mas vai subir», confia José, que sabe de cor as manhas do chicharro. Tem 45 anos e mais de vinte de mar. «Ele sobe, se não for aqui é mais além, ele sobe.» Subiu. Mais «cem quilos, no máximo». Emanuel põe o motor a trabalhar, seguimos para outro local até o sonar indicar a presença de peixe. A traineira pára. Na lancha, João atira novamente o engodo. Lança-se a rede. Fecha-se o cerco. Puxa-se a rede. «Cem quilos, talvez mais», diz João filho, a olho, espreitando para dentro do tino. Os pescadores questionam se vale a pena outra largada. Emanuel decide regressar a terra, não ao cais da Caloura de onde partimos, mas ao de Vila Franca do Campo, por ficar «mais perto». «Amanhã é de Vila Franca que partimos para o mar.»
À chegada, enquanto uns homens preparam as artes para o desembarque no dia seguinte, outros retiram o chicharro do tino e distribuem-no em caixas de plástico, separando-o da cavala e da boga que também vieram à rede. As caixas seguem para uma sala grande, onde são pesadas. Um funcionário da Lotaçor regista a carga: «301 quilos», dos quais um quilo é de cavala e cinco de boga. «Desta vez vai tudo para a lota, não sobra para levarmos algum para casa.» Emanuel só pode apanhar trezentos quilos de chicharro, mas se pesca quatrocentos não o devolve ao mar - uma parte distribui pelos homens, outra envia para a fábrica para transformar em farinha, que usará como isco para atrair o chicharro. O peixe acabado de descarregar seguirá daqui a pouco para a lota de Ponta Delgada.
O leilão do peixe
Às seis da manhã abrem as portas das duas lotas de São Miguel, a de Rabo de Peixe e a de Ponta Delgada. Manda a lei que a primeira venda do pescado deve ser feita em leilão, embora se admitam acordos preestabelecidos entre os armadores e as conserveiras, que compram o bonito directamente ao pescador, ainda o peixe está no mar. Deve ser por isso que entre os potenciais compradores presentes no leilão em Ponta Delgada não figurem representantes das fábricas de conserva (nesta ilha existem duas, a Cofaco e a Sociedade Corretora).
O espaço onde decorre o leilão tem a configuração de um anfiteatro. Os intermediários - os que compram o peixe à Lotaçor (que o comprou aos pescadores) para o vender a restaurantes, hipermercados e peixarias - sentam-se nas escadas e fixam o olhar no «palco», em baixo, onde uma passadeira rolante expõe, em fila, as caixas de peixe capturado na véspera. Por aqui passará o atum de João Machado e o chicharro de Emanuel.
Faz muitos anos que o leilão de peixe na lota de Ponta Delgada não é gritado. João Mendonça, o leiloeiro que hoje está de serviço, lembra-se dos tempos em que a sua voz ficava rouca, por força de apregoar, alto e bom som, o valor do pescado. «Foram anos assim, a leiloar à voz, a ver quem dava mais pelo peixe. Com o sistema electrónico, o leilão é mais rápido.» Esta foi a primeira lota do arquipélago a informatizar o leilão. Perdeu-se o cariz familiar da transacção, mas, garante António Silva, antes pescador e actualmente intermediário, ganhou-se em «justiça e eficácia». Além de que permite o cumprimento das normas comunitárias em vigor, que no que respeita à venda do pescado exigem o acesso do comprador a informações como a classificação das espécies comercializadas. Com este sistema, os intermediários vêem o peixe que está a passar à sua frente e, em simultâneo, num ecrã gigante, a identificação da embarcação, o nome da espécie, o grau de frescura, o calibre, o tamanho, o número do lote e o valor de início da venda - a partir do momento em que um sinal sonoro dá início ao leilão, o valor do peixe vai decrescendo. Os intermediários têm nas mãos um comando; se o preço do peixe está «a jeito», carregam no botão que sela o negócio (nessa altura, o código de quem comprou também aparece no ecrã). O primeiro a carregar é quem fica com o peixe.
O intermediário que mais carrega no botão é António Mineiro, já nos tinham dito. Dele ouvimos dizer que é o «melhor amigo dos pescadores», por garantir o escoamento de grande parte do peixe descarregado na ilha, embora também não falte quem o descreva como «inimigo da restauração». Ernesto Silva, dono e gerente do restaurante Paraíso do Milénio, em Água de Pau, ressente-se com a aquisição do «grande intermediário». Diz que não consegue «competir» com «o homem que fica com mais de oitenta por cento do peixe capturado em São Miguel». O desabafo surge em resposta a uma observação que fizemos sobre a ementa, que, estranhámos, não inclui nenhum prato de atum, nem fresco nem congelado, nem sequer de conserva. «Quer atum? Arranjo-lhe, mas demora um bocado e não é fresco. A gente se quiser ter atum tem de o congelar, não dá para ir à lota todos os dias buscá-lo. A gente não tem hipótese de comprar aos preços que os intermediários compram.» «Antes de o preço do peixe descer para um valor que eu posso pagar, já os intermediários carregaram no botão há muito tempo.» «Eles podem comprar o peixe um bocadinho mais caro que nós porque vão vendê-lo lá fora a preços que compensam. O senhor António Mineiro, então, esse manda o atum todo lá para fora, para o Japão, para fazer o sushi.»
É verdade que António Mineiro é o «tubarão» da transacção do pescado nas lotas de Ponta Delgada e de Rabo de Peixe. A sua lista de clientes é longa. Diz-nos o próprio que tem compradores em Portugal, Itália, Espanha, Suíça, Estados Unidos, Japão e noutros países, mas, ao contrário do que muitos dizem e outros ouvem dizer, não é para o Japão que encaminha a maior parte do atum. Nos minutos em que o leilão pára para os intermediários tomarem o pequeno-almoço, António acede, contrafeito, a esclarecer alguns «diz-que-disse»: «O atum para o sushi tem de ter cor e muita gordura. O atum daqui não tem gordura suficiente. O bonito então não serve mesmo, é seco. E o patudo também não. Os japoneses abastecem-se mais do atum espanhol. Em Espanha há muitos viveiros de engorda de atum, precisamente para o peixe ganhar gordura.» Em Portugal, a engorda do atum não é prática corriqueira; existem apenas dois viveiros, no Algarve. Algumas associações ambientalistas internacionais criticam a criação de atum em viveiro - o atum apanhado no mar e depois mantido em cativeiro -, utilizando como argumento o «impacte negativo» que este método terá «sobre outras espécies» (para engordar um quilo, um atum precisa de comer entre 20 e 25 quilos de outros peixes).
Encostado ao balcão do bar enquanto aguarda o café, António Mineiro mantém-se evasivo, contido nas palavras, mesmo quando atribui razão para o problema dos restaurantes: «Não sabem comprar. Eles chegam aqui à lota e vêem o cherne a vinte euros e compram. A seguir vão-se embora com a ideia de que pagaram caro o peixe e que não têm hipótese contra nós, os intermediários. Claro que pagaram caro. Se esperassem um bocado mais eram capazes de conseguir comprar a 14 euros. Não sabem comprar.» E desmentindo a fama de que «os intermediários é que ganham o dinheiro todo da pesca», revela um lucro de «apenas cinquenta ou sessenta cêntimos por quilo de peixe». Este ano, António terá comprado «umas 250 toneladas de atum». Apenas uma ínfima parte ficou em território nacional: «Para Portugal vendo muito menos, cá não existe o hábito de consumir atum fresco, é mais o de conserva.» Quem quer atum fresco encontra-o nos grandes supermercados, pelo menos naqueles que este importador e exportador de peixe fornece: «O Pingo Doce, a Macro, o Modelo, o Continente...», entre outros.
Até o leilão terminar, têm de passar no tapete rolante 876 caixas. Faltam 202. Metade das pessoas que aqui estavam quando o leilão abriu já abalou. António não arreda pé. Com o comando na mão e pé apoiado na grade que separa o tapete rolante da «assistência», o negociante posiciona-se de maneira a ver bem o estado dos peixes, de várias espécies: além de bonito, boca-negra, peixão, raia, abrótea, safio, peixe-galo, peixe-espada, garoupa, pargo, rocaz, anchova, cherne, bodião vermelho, lírio, congro, moreia, rinquim, espadarte... O espadarte é o maior peixe na transacção de hoje. É António quem compra os mais pesados. Esta é a época do bonito e esse, mais do que aqui para a lota, segue directo para as conserveiras. Fosse a época do atum-voador, do albacora, do patudo ou do muito apreciado rabilho, o maior dos tunídeos, o espadarte não seria o rei e senhor deste leilão.
Fonte: Jornal de Notícias